Todos os dias ele passava diante do espelho e tinha a certeza inenarrável de que não fazia a mínima diferença para o mundo que o cercava. Pensava que era uma espécie rara, um ser em extinção, em extinção até mesmo do dicionário, um menino sem sombra, sem chance de ser notado, achava que seu receptáculo de sonhos, sua caixa torácica estava vazia, sem vontades e objetivos era de se esperar que ele tivesse medo de tudo, medo de estrelas, da noite, do sol, do açoite, do choro e do riso, do áspero e do liso.
De fato não tinha muito do que se gabar, só mesmo do que se amedrontar. Só não tinha medo do silêncio, que lhe varria a alma diariamente, que lhe sussurrava ao pé d'ouvido o quanto ele era bonito, o silêncio, seu amigo de sempre que lhe acolhia pelas noites, que cantarolava sonetos ultra-românticos que lhe embalavam a alma.
Mas algo estava fora do normal e ele já suspeitava. Seu jornal não lhe dava mais cobertura, seu papelão não lhe esquentou de fato, deu falta até do seu sapato, que embora furado, sem cordão ou palmilha, para proteger do chão era uma maravilha.
Nada de escuro ou de pensares noturnos, naquela noite, naquela soturna noite ele ouviu um som que mudaria pra sempre sua vida sem sombra. Era um som estranho, um tanto quanto agudo, um tanto quanto sutil, uma candura de som, um som que deslizava lentamente para seus ouvidos. Levantou-se e deixou-se levar pelo som, o seguiu por entre as ruas, os becos, os cães e guetos até que encontrou um jeito de observar sem ser notado, por cima de um muro.
Um homem estranho se movendo de forma estranha, com um arco na mão, que mais parecia uma vara de se bater em criança levada, assim como acontecera durante toda sua vida, mas ele não sentia medo, afinal era um som tão harmonioso e cativante que ele saltou o muro e caminhou para mais perto. O homem, por sua vez, não parava de tocar, de solfejar aquelas notas mágicas, aqueles sons estranhos que lhe atraía, mais e mais. Por um minuto o menino sem sombra pensou sentir algo diferente, mas como pode? Ele não sentia, não pensava, ao menos era o que aparentava, porém, e sempre existe um porém, o menino viu algo que lhe assombrou a alma, que aliás não sabia que tinha. Ele se viu cantarolando, bailando sobre o luar, embalado pelas notas saltitantes que saiam do instrumento deveras curioso.
Tratava-se de um violino, rajado e tigrado, 4 quartos, arqueado por um músico apaixonado, nos seus olhos o menino enxergava a lua, o céu estrelado e os sonhos, a muito esquecidos, até mesmo os não sonhados olhavam pra ele através dos olhos do senhor de vestes distintas, casaca meio fraque e cartola combinando. O menino sem sombra ficou toda a noite em claro, embasbacado diante daqueles sons, e a noite foi pequena para a extensão de seus sonhos, tão pequena que logo raiou o sol, o rei das cores e calores, que de tão quente, tanto que o musico foi obrigado a guardar seu violino em sua caixa preta e ir-se por entre as sombras das árvores da calçada, o que deixou o menino, pensante e com um sorriso estampado em sua carinha estonteada. Pôs-se a caminhar de volta e tinha agora, apenas um pensamento a seguir, aquela musica o dominara por completo e ele repetia pra si mesmo o quanto era doce redescobrir o sonho, e, pouco a pouco foi percebendo que o sol iluminava seu corpo e algo mágico acontecia sob seus pés, sua sombra pouco a pouco aparecia, o que o fazia pensar que a única coisa que faltava para seu surgimento era se deixar luzir pelo sol, ou pelo sonho, já não fazendo mais importância a ordem das palavras, só mesmo seus sentidos. O sol, a sombra e o menino eram feitos da mesma matéria, os sonhos, que agora se reinventavam diariamente em sua mente, metas e objetivos calcados na arte.
Enfim, o menino sem sombra agora poderia ser notado, visto como um ser que pensa, ser que sonha, um ser vivo.